Por: CARLOS ROSA MOREIRA
20/07/2024
08:55:44
FEIRINHA NA PRAÇA
...Uma bancada com objetos usados chamou minha atenção. Meus olhos caíram sobre um anel de metal dourado com uma grande pedra verde ovalada. Então ruídos e calor deram lugar ao silêncio e me senti num encontro de família, há muitos anos, na sombra amena da sala da minha casa. Percebi perfume de Chanel nº 5, de chá, de café e de biscoito Zé Pereira saído do forno. Houve um anel idêntico (seria aquele?) no dedo da minha mãe ou da minha avó ou de alguma tia naquelas tardes mensais e infalíveis de reuniões familiares. Eu gostava quando aparecia por lá o pintor Funchal Garcia, amigo do meu avô. Alto, magro e narigudo, Funchal encarnava o Cyrano com perfeição, sabia muitos daqueles diálogos e os recitava atuando, impávido e emocionado no centro da sala, para deleite e aplausos das senhoras. Funchal e o meu avô conversavam sobre quadros, livros e viagens. Lembro-me do velho pintor a contar suas pesquisas em Canudos, quando ainda conversou com gente que viveu no tempo das batalhas.
Ao lado do anel descansava uma canetinha de bambu envernizado, com a inscrição: “Lembrança de Cambuquira”. Antigamente os mais velhos lá de casa iam beber água em Cambuquira. Eu mesmo ganhei uma caneta semelhante àquela, e talvez ainda tenha, em algum armário, copinhos sanfonados com aqueles mesmos dizeres. E me perguntava por que iam tão longe para beber água... E bebiam tanta água assim?
‒ Bebe, meu filho. Sua avó ainda traz uma garrafinha para beber na viagem de volta – dizia meu avô.
‒ E a água é boa?
‒ É... mas umas têm gosto de pum!
Eu ficava entre surpreso e
sorridente, olhando para a cara bem humorada do meu avô.
Vários outros objetos faziam companhia ao anel e à caneta. Postais antigos mostravam a curva de uma praia de Guarapari. Tinha certa chiqueza, na sociedade interiorana fluminense, frequentar Guarapari naqueles idos dos sessenta. Minha família preferia a modesta Marataízes, quase um arraial com ruas de areia. Deixaram de beber água em Cambuquira para se enterrar nas areias monazíticas de Marataízes. As mulheres se enterravam até o pescoço.
‒ Vem, meu filho, se enterra também, é bom pra saúde!
Eu me enterrava também, mas por breve tempo. O chamado das ondas me fazia sair rapidinho daquela imobilidade arenosa. Bom era caminhar ao longo das desertas praias de Marataízes, observar a exuberância do mar, catar pequenas formações calcárias trazidas pelas ondas e correr atrás de guruçá. Contavam que na Ponta dos Cações havia tanto cação que eles saltavam sobre as águas. Nunca vi nenhum, mas guardo a curva bonita da praia solitária, as ondas quebrando umas sobre as outras e o prazer de estar livre, entregue a mim mesmo. Soprava um vento forte todas as tardes, talvez o mesmo nordeste vespertino que encapela os mares fluminenses de Búzios para cima. Tenho as fotos das mulheres da família com seus cabelos esvoaçantes, muitos sorrisos e as mãos a segurarem os vestidos que o vento não respeitava; e a lembrança do meu avô em pé na areia, a olhar para baixo, fixando no visor de sua inseparável Rolleyflex as imagens para sempre fixadas em minha memória.
Na bancada há um cachorrinho de louça com a orelha lascada, coisas modestas de metal dourado e prateado, pequenos objetos que parecem abandonados e cansados, como se ainda tivessem de se exibir após longas existências. Deixo a praça. Vou andando para casa, que me espera vazia. Também me sinto sozinho e um pouco cansado. Vou pensando em minhas pequenas coisas e em velhas fotografias que descansam nos fundos das gavetas, onde prefiro deixá-las.