Por: CARLOS ROSA MOREIRA
21/08/2024
16:59:55
OLHARES
...Às vezes ela fica silenciosa, amuada. Aí se torna mais ativa, muda móveis de lugar sem pedir ajuda a ele, mas se ele não ajuda, ela diz coisas ácidas. Por mais que faça ele percebe o tempo fechar. As panelas batem, a irritação dela vai às
nuvens e, logo logo começa a cobrar coisas que ele devia ter feito mas ainda
não fez. Então ele a convida para sair. Vêm ao Rio. Passeiam pela Dias Ferreira, rodam em algum shopping, jantam num restaurante japonês, caminham pelo calçadão na manhã de sábado e assistem a uma peça à noite. Depois ela mesma quer voltar. E volta mansa, satisfeita como sempre, doida pra “queimar uma carne e tomar uma caninha”.
É um casal bacana. De vez em quando vou até lá degustar o tempo com eles, além da caninha.
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Ela passa e não me cumprimenta. Vai de mão dada com o namorado. Ela me viu, mas fingiu não ver. Por que fez isso?
Talvez esse meu jeito largado, bebendo sozinho numa mesa de bar na calçada, não
recomende a uma senhora cumprimentar-me. É comum as mulheres baixarem os olhos e apressarem o passo diante de um boteco com esses olhares parvos, devassos, desembuchados pelo álcool. O namorado poderia querer saber de quem se trata.
Obrigá-la a um desvio ou mentira. Mas acredito ser outro o motivo. Ocorre serem
muito práticas as mulheres; e nós, homens, muito românticos. Tornei-me nada.
Uma coisa sem nenhum interesse prático. Algo a ser esquecido. É semelhante à
situação de alguém que consegue uma posição melhor do que a anterior, à qual
deve dedicar-se, pois o futuro mostra-se promissor. Mas fixo o olhar nela e ela
pressente. Acredito perceber um ligeiro tremular em seu espírito (sou um
coração romântico e nada presunçoso). Penso coisas simples e doces. Vejo-a nas
praias de Búzios, queimada pelo sol, afogueada e risonha. Os cabelos quase
sempre presos, o carinhoso olhar minhoto. Dois verões inteiros juntos com um
ano no meio. Mas, talvez, ela tenha razão: foi há tanto tempo... Somos agora um
jovem senhor e uma jovem senhora. O namorado é bem mais velho, conheço-o de
vista. Com certeza que a bermuda e a camisa foram presentes dela, não combinam
com o jeitão dele. Se bem a conheço, ela vai mudá-lo. Mulheres adoram doutrinar a gente. É... é melhor mesmo fingir não me ver. Recordo nossos momentos após a praia, mais “calientes” do que o sol. E depois me pedia para recitar Camões e a “Animula, Vagula, Blandula”, me chamava de “terna alminha minha”. Agora passa nessa frieza, agarrada ao futuro que eu mísero e lírico poderia ameaçar. Devo ter virado aquela coisa que as mulheres chamam de “traste”. Mais prática do que o porquinho de macacão. E talvez eu esteja com uma dorzinha de cotovelo...
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Era um senhor, talvez sessenta ou pouco menos. Entrou na casa lotérica parecendo contrariado. Eu estava na fila, aguardando a minha vez. Ele pegou um volante, olhou com indiferença, quase desprezo, fez que ia sair, mas não foi, olhou para os lados, tirou do bolso uma caneta e começou a preencher os números. Depois entrou na fila. Mostrou-me o volante e perguntou com certo desdém:
─ É assim que se preenche isto?
“É”, respondi. Ele batia com o
volante na perna, impaciente, pouco à vontade, falando para si e para possíveis
ouvintes:
─ Nunca fiz jogo, nem sei como é
isto. Sempre trabalhei na minha vida, nunca me envolvi com isto.
Continuou na fila, resmungando, aborrecido, parecendo ter desprezo por tudo à volta. E, talvez, cheio de esperanças no coração. Angustiadas esperanças.